sábado, 31 de outubro de 2009

A Realidade e a Existência do Mal Vista Sob Um Prisma Agostiniano

A Realidade e a Existência do Mal Vista Sob Um Prisma Agostiniano


*Evanildo Ferreira da Silva


Dentre os diversos problemas levantados pelo pensamento ocidental, encontramos no período medieval, especialmente em Santo Agostinho, a busca exaustiva por uma explicação racional em torno do problema do mal. Uma das questões a ser pensada está relacionada à existência do mal. O mal existe, verdadeiramente? Uma outra questão está relacionada à sua origem. Se existe, quem o criou, e de onde surgiu? Se somente Deus é Criador, Teria sido ele o criador do mal, sendo Deus o Sumo Bem? Uma terceira questão está relacionada à sua essência. O que seria, na verdade, o mal? Poderíamos admitir a existência do mal enquanto substância, ou seria apenas a ausência do bem, como o próprio agostinho Afirmou?
Pretende-se, através dessa discussão, repensar a existência do mal em suas três dimensões, levantando hipóteses e apresentando possíveis soluções dentro da ótica Agostiniana.
Antes de procurarmos responder a qualquer dos questionamentos acima citados, precisamos pensar a relação existente entre Deus, a criação, o homem e o mal. Se concluirmos que, mesmo sem encontrarmos uma resposta convincente a respeito do assunto, o mal exista, e é , em certa medida, irrefutável, precisamos pensa-lo em três dimensões: A dimensão de Deus, a dimensão da criação, e a dimensão do homem. Assim, nossa tarefa será levantar algumas hipóteses em torno do problema do mal, e apresentarmos algumas possíveis soluções.
Agostinho herdou do maniqueísmo a idéia da liberdade como instrumento de reflexão sobre o problema do mal. Porém, isso não lhe fornecia as repostas que procurava. “Donde me vem o querer eu o mal e não querer o bem?”. Que liberdade seria essa que não me permite escolher o bem , uma vez que o mal está sempre comigo?
“O problema da liberdade está relacionado com a reflexão sobre o mal, a sua natureza e a sua origem. Santo Agostinho, maniqueu na sua juventude (os maniqueus postulam a existência de dois princípios activos, o bem e o mal), aceita a explicação de Plotino, para quem o mal é a ausência de bem, é uma privação, uma carência. E ao não ser alguma coisa positiva, não pode atribuir-se a Deus. Leibniz, no século XVII, «ratifica» esta explicação”.
Enquanto que no maniqueísmo a existência do bem e do mal era compreendida como dois princípios ativos, Santo Agostinho, por sua vez, não conseguia conceber a idéia da existência do mal nem enquanto princípio ativo, muito menos sua existência enquanto substância. A partir do momento em que se admitia a existência do mal, admitir-se-ia também um suposto criador para o mal.
A dúvida em relação à existência do mal estava evidente no pensamento Agostiniano, principalmente em relação à sua origem. Se somente Deus é criador, e sendo ele o Sumo Bem, poderia ter criado o mal? E se Deus não o criou, quem o poderia ter criado? “Quem me criou? Não foi o meu Deus, que é bom, e é também a mesma bondade? Donde me veio, então, o querer eu o mal e não querer o bem?... Quem colocou em mim e quem semeou em mim este viveiro de amarguras, sendo eu inteira criação do meu Deus tão amoroso?”.
Agostinho não admitia uma perspectiva criacionista para o mal. E como admitia que tudo o que existia era criação de Deus; e não poderia ter sido ele o criador do mal, nesse sentido seria coerente deduzir que o mal não existia enquanto criação de Deus. Segundo Agostinho, aquele mal que procurava não era uma substância, pois se fosse substância, seria um bem. Por outro lado, o que seria esse mal que não podemos negar, por estar intimamente ligado à nossa natureza? Qual a compreensão poderíamos encontrar para aquilo que chamamos de mal? A conclusão chegada por Agostinho é a de não conceber o mal enquanto substância, uma vez que isso contrariaria o sumo Bem, criador de todas as coisas.
Foi diante das afirmações de Plotino que Agostinho se curva à idéia do mal como a ausência do bem, mas não somente isso, aceita a hipótese de o mal ser o distanciamento do Bem. Se Deus criou todas as coisas, e todas as coisas criadas são boas, e não podemos negar a existência do mal na dimensão humana, concluímos que o distanciamento do sumo Bem seria o mal; mas não uma substância. Poderíamos dizer que seria um bem menor, ou um bem inferior, conforme afirma Agostinho.
Por que não poderia ter sido Deus o autor do mal? Segundo o pensamento de Agostinho, a incorruptibilidade de Deus o torna incompatível com a hipótese de ter sido o criador do mal. “É absolutamente certo que de modo nenhum pode a corrupção alterar o nosso Deus, por meio de qualquer vontade, de qualquer necessidade ou de qualquer acontecimento imprevisto, porque Ele é o próprio Deus, porque tudo o que deseja é bom e Ele próprio é o mesmo Bem. Ora, estar sujeito à corrupção não é um bem”. Admitir que o mal seja originado de Deus, o bem supremo, é admitir que haja nEle a corruptibilidade, o que seria incompatível com a sua natureza e seu caráter. Sua natureza e caráter podem ser confirmados através da Bíblia na Primeira Epístola de João, dentre outros textos. “Ora, a mensagem que da parte dele temos ouvido e vos anunciamos, é esta: Que Deus é luz, e não há nele treva nenhuma”. Ora, se Deus é luz, e nele não pode haver treva nenhuma, podemos afirmar que a luz não poderia gerar as trevas. O texto bíblico disse que Ele é Luz. Nesse sentido, Ele está isento da possibilidade ter sido o criador do mal.
Concluímos que na dimensão de Deus, o mal não poderia existir. Mas não podemos negar sua presença na dimensão humana nem na dimensão da criação. Fica, porém a necessidade de uma resposta para o mal nessas duas dimensões. Se não surgiu de Deus, como passou a existir fora dEle, sendo que Ele não pode ser surpreendido por nada e ninguém? Teria criado as coisas e pessoas imperfeitas, sendo ele perfeitíssimo? Se admitirmos que o mal nasceu em Lúcifer, ou tenha surgido dele, de onde poderia ter vindo, sendo Deus criador de todos os anjos e também criador de todas as coisas?
Agostinho, progressivamente, começa a interpretar a questão do mal a partir da existência do Bem. “Vi claramente que todas as coisas que se corrompem são boas: não se poderiam se corromper se fossem sumamente boas, nem se poderiam corromper se não fossem boas. Com efeito, se fossem absolutamente boas, seriam incorruptíveis, e se não tivessem nenhum bem, nada haveria nelas que se corrompesse... Se são privadas de todo o bem, deixarão totalmente de existir. Logo, enquanto existem, são boas”. Estava evidente no pensamento de Agostinho que Deus teria criado boas todas as coisas, e que não existia nenhuma substância que não teria sido criada por Ele. Diz então Agostino: “Em absoluto, o mal não existe nem para vós, nem para as vossas criaturas, pois nenhuma coisa há fora de Vós que se revolte ou que desmanche a ordem que lhe estabelecestes. Mas porque, em algumas das suas partes, certos elementos não se harmonizam com outros, são considerados maus. Mas estes coadunam-se com outros, e por isso são bons (no conjunto) e bons em si mesmos. Todos estes elementos que não concordam mutuamente concordam na parte inferior da criação a que chamamos terra...”.
Para agostinho, todas as coisas criadas são boas. Umas num plano superior e outras num inferior; todas, porém cooperando juntamente e harmoniosamente para o Bem. Onde residiria então esse bem inferior, ou aquilo que chamamos de mal? A conclusão chegada por Agostinho está apontada para a dimensão do homem. Segundo o seu pensamento, após ter procurado a maldade, não encontrou uma substância, mas sim uma perversão da vontade desviada da substância suprema. Mas ficará ainda aquela interrogação: Quem colocou no homem esta inclinação, ou esta perversão. Como compreender isso à luz de tudo que vimos sobre Deus? Se o pecado é o distanciamento do Bem supremo, o afastamento de Deus, como surgiu esse pecado? Podemos admitir que, de fato, que o nosso retorno para a luz resolveria muitas questões humanas. Aceitamos também que esse retorno só é possível por intervenção divina, e que biblicamente se torna possível pela Graça, “Pela Graça sois salvas”. Fica ainda mais uma interrogação: Por que, inclinou-se para o mal, e não para o Bem?

Referências Bibliográficas:

ALMEIDA, João Ferreira, Tradutor, Bíblia Vida Nova, Sociedade Religiosa Edições Vida Nova e Sociedade Bíblica do Brasil, São Paulo. 1993

BOEHNER, Philotheus e GILSON, Etienne, História da Filosofia Cristã, Desde as Origens até Nicolau de Cusa, Vozes, Petrópolis, 1985